A CONSCIÊNCIA E A VIDA CORRETA, UM ARTIGO DO CARDEAL JOSEPH RATZINGER..
Província Santa Rita de Cássia
Brasil
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Seguir a consciência significa realizar todos os nossos
gostos? O conceito de autoridade exclui o conceito de liberdade? O então
Cardeal Ratzinger fala sobre essas e outras questões nesse conjunto de
reflexões tirado do posfácio do livro Joseph Ratzinger: uma biografia.
A unidade do homem tem um órgão: a consciência. Foi uma
ousadia de São Paulo afirmar que todos os homens têm a capacidade de escutar a
sua consciência, separando assim a questão da salvação da questão do
conhecimento e da observância da Torah e situando-a no terreno da comum
exigência da consciência em que o Deus único fala e diz a cada um o que é
verdadeiramente essencial na Torah: Quando os gentios, que não têm lei, cumprem
naturalmente as prescrições da lei, sem ter lei são lei para si mesmos,
demonstrando que têm a realidade dessa lei escrita no seu coração, segundo o
testemunho da sua consciência... (Rom 2, 14 e segs.). Paulo não diz: “Se os
gentios se mantiverem firmes na sua religião, isso é bom diante do juízo de
Deus”. Pelo contrário, ele condena grande parte das práticas religiosas daquele
tempo. Remete para outra fonte, para aquela que todos trazem escrita no
coração, ao único bem do único Deus.
Seja como for, aqui se enfrentam hoje dois conceitos
contrários de consciência, que na maioria das vezes simplesmente se intrometem
um no outro. Para Paulo, a consciência é o órgão da transparência do único Deus
em todos os homens, que são um homem. Em contrapartida, atualmente a
consciência aparece como expressão do caráter absoluto do sujeito, acima do
qual não pode haver, no campo moral, nenhuma instância superior. O bem como tal
não seria cognoscível. O Deus único não seria cognoscível. No que diz respeito
à moral e à religião, a última instância seria o sujeito.
Isto seria lógico, se a verdade como tal fosse inacessível.
Assim, o conceito moderno da consciência equivale à canonização do relativismo,
da impossibilidade de haver normas morais e religiosas comuns, ao passo que,
pelo contrário, para Paulo e para a tradição cristã, a consciência sempre foi a
garantia da unidade do ser humano e da cognoscibilidade de Deus, e assim da
obrigatoriedade comum de um mesmo e único bem. O fato de que em todos os tempos
houve e há santos pagãos baseia-se em que em todos os lugares e em todos os
tempos – embora muitas vezes com grande esforço e apenas parcialmente – a voz
do coração era perceptível; a Torah de Deus se nos fazia perceptível como obrigação
dentro de nós mesmos, no nosso ser criatural, e assim tornava possível que
superássemos a mera subjetividade na relação de uns com os outros e na relação
com Deus. E isto é a salvação (1).
CONSCIÊNCIA E VERDADE
A vida e a obra do Cardeal Newman poderia ser realmente
definida como um extraordinário e extenso comentário ao problema da consciência
<...>. Quem não se recorda <...> da famosa frase acerca da
consciência na carta que dirigiu ao duque de Norfolk? Diz assim: “Se tivesse de
brindar pela religião, o que é altamente improvável, fá-lo-ia pelo Papa. Mas em
primeiro lugar pela consciência. Só depois o faria pelo Papa” (2). Newman
queria que a sua resposta fosse uma adesão clara ao Papado em face da
contestação de Gladstone, mas também queria que fosse, em face das formas
errôneas do “ultramontanismo”, uma interpretação do Papado que só pode ser
concebido adequadamente quando visto de forma conjunta com o primado da
consciência, não como oposto a ela, mas como algo que a funda e lhe dá
garantia. É difícil para o homem moderno, que pensa sempre na subjetividade
como oposta à autoridade, entender esse problema. Para ele, a consciência está
do lado da subjetividade e é expressão da liberdade do sujeito, enquanto a
autoridade aparece como sua limitação e, inclusive, como sua ameaça e negação.
É preciso aprofundar mais em tudo isso para entender de novo a perspectiva em
que tal oposição não é válida.
O conceito central de que Newman se serve para unir
autoridade e subjetividade é a verdade. Não tenho reparos em dizer que a
verdade é a idéia central da sua luta espiritual. A consciência ocupa para ele
um lugar central porque a verdade está no centro. Dito de outra maneira: em
Newman, a importância do conceito de consciência está unida à excelência do conceito
de verdade e deve ser entendida exclusivamente a partir dele. A presença
constante da idéia de consciência não significa a defesa, no século XIX e em
contraposição à neo-escolástica “objetivista”, de uma filosofia ou uma teologia
da subjetividade. O sujeito merece, a seu ver, uma atenção como não havia
despertado talvez desde Santo Agostinho. Mas é uma atenção na linha de Santo
Agostinho, não na da filosofia subjetivista da modernidade. Ao ser elevado ao
cardinalato, Newman confessou que toda a sua vida tinha sido uma luta contra o
liberalismo. Poderíamos acrescentar: e também contra o subjetivismo cristão tal
como o encontrou no movimento evangélico do seu tempo, e que constituiu o
primeiro degrau de um caminho de conversão que duraria toda a sua vida.
A consciência não significa para Newman a norma do sujeito
frente às demandas da autoridade num mundo sem verdade, que vive entre as
exigências do sujeito e da ordem social, mas, antes, a presencia clara e
imperiosa da voz da verdade no sujeito. A consciência é a anulação da mera
subjetividade no ponto em que se tangenciam a intimidade do homem e a verdade
de Deus. São significativos os versos que escreveu na Sicília em 1833: “Eu
amava o meu próprio caminho. Agora Te peço, ilumina-me para Te seguir” (3). A
conversão ao catolicismo não foi para ele uma questão de gosto pessoal ou de
uma necessidade anímica subjetiva. Já em 1844, no umbral de sua conversão,
falava sobre isso com estas palavras: “Ninguém pode ter uma opinião mais
desfavorável que eu da situação atual dos católicos” (4). Mas a Newman
importava mais obedecer à verdade, inclusive contra o seu próprio sentir, que
seguir o seu gosto, os vínculos de amizade e os caminhos trilhados.
Parece-me muito significativo que ele tenha sublinhado a
prioridade da verdade sobre o bem na série das virtudes, ou, expresso de forma
mais compreensível para nós, a sua primazia em face do consenso e dos pactos de
grupo. Eu diria que essas atitudes são comuns quando falamos de um homem de
consciência. Homem de consciência é aquele que não compra tolerância,
bem-estar, êxito, reputação e aprovação públicas renunciando à verdade. Nisso
Newman coincide com outra grande testemunha britânica da consciência, com
Thomas More, para quem a consciência nunca foi expressão da sua vontade de
obstinação nem de heroísmo caprichoso. Thomas More contava-se a si mesmo entre
os mártires temerosos que só depois de muitos atrasos e inumeráveis
questionamentos conseguiu levar a alma a obedecer à consciência: a obediência à
verdade, que deve estar acima das instâncias sociais e dos gostos pessoais.
Aparecem então dois critérios para distinguir a presença de uma verdadeira voz
da consciência: que não coincida com os desejos e gostos próprios nem com o que
é mais benéfico para a sociedade, o consenso do grupo ou as exigências do poder
político ou social.
Chegados a este ponto, parece natural lançar um olhar aos
problemas da nossa época. O indivíduo não deve trair a verdade reconhecida para
comprar o progresso e o bem-estar. A humanidade não o permite. Com isto,
tocamos o ponto verdadeiramente crítico da modernidade: o conceito de verdade
foi praticamente abandonado e substituído pelo de progresso. O progresso “é” a
verdade. Mas com essa aparente elevação desmente-se e anula a si próprio, pois
quando não há direção, o mesmo movimento pode ser tanto progressivo como
retrógrado. É assim que a teoria da relatividade formulada por Einstein vê o
cosmos físico. Mas penso que também descreve com acerto a situação do cosmos
espiritual do nosso tempo. A teoria da relatividade estabelece que não há
nenhum sistema de referência fixo; cabe a nós considerar um ponto qualquer como
referência e a partir dele tentar medir a totalidade, pois apenas assim
poderemos obter resultados; da mesma maneira que escolhemos um, poderíamos ter
escolhido qualquer outro.
O que se diz a respeito do cosmos físico reflete também o
segundo giro “copernicano” que se deu na nossa relação fundamental com a
realidade: a verdade, o absoluto, o ponto de referência do pensamento deixou de
ser evidente. Por isso, já não há – tampouco do ponto de vista espiritual – nem
norte nem sul. Não há direção num mundo sem pontos de medida fixos. O que
consideramos direção não assenta numa medida verdadeira, mas numa decisão nossa
e, em última análise, no ponto de vista da utilidade. Num tal contexto
“relativista”, a ética teleológica ou conseqüencialista converte-se numa ética
niilista, mesmo quando não se percebe. O que numa cosmovisão como essa se chama
“consciência” é, considerada em profundidade, um modo de dissimular que não há
autêntica consciência, isto é, unidade de conhecimento e verdade. Cada um cria
os seus próprios critérios, e, na situação de relatividade geral, ninguém pode
ajudar os outros, e menos ainda dar-lhes instruções.
Agora se percebe a enorme radicalidade do debate ético atual,
cujo centro é a consciência. Penso que o paralelismo mais aproximado na
história das idéias é a controvérsia entre Sócrates e Platão, por um lado, e os
sofistas, por outro, na qual se põe à prova a resolução originária de duas
atitudes fundamentais: a confiança na capacidade humana de verdade e uma visão
do mundo na qual o homem cria os seus próprios critério.
O motivo pelo qual Sócrates, um pagão, se converteu em certo
sentido num profeta de Jesus Cristo é, a meu ver, essa questão primordial: a
sua disposição de acolher a verdade foi o que permitiu ao modo de fazer
filosofia inspirado na sua figura o privilégio de ser de algum modo um elemento
da História Sagrada, e o que fez dele um recipiente idôneo do Logos cristão,
cuja finalidade é a libertação pela verdade e para a verdade. Se separarmos a
luta de Sócrates das contingências históricas do momento, perceberemos
rapidamente com que intensidade intervém – com outros argumentos e nomes – nos
assuntos da polêmica do presente. <...>
Em muitos lugares já não se pergunta o quê um homem qualquer
pensa. Basta-nos dispor de uma idéia sobre o seu modo de pensar para incluí-lo
na categoria formal conveniente: conservador, reacionário, fundamentalista,
progressista ou revolucionário. A inclusão num esquema formal torna
desnecessária qualquer explicação do seu pensamento. Algo parecido, mas
reforçado, se observa na arte. O que expressa é indiferente: pode glorificar
Deus ou o diabo. O único critério é que seja formalmente conhecido.
Com isto, chegamos ao verdadeiro núcleo do nosso assunto.
Quando os conteúdos não contam e a pura fraseologia assume o comando, o poder
converte-se em critério supremo, isto é, transforma-se em categoria –
revolucionária ou reacionária – dona de tudo. Esta é a forma perversa de
semelhança com Deus de que fala o relato do pecado original. O caminho do mero
poder e da pura força é a imitação de um ídolo, não a realização da imagem de
Deus. O traço essencial do homem enquanto homem não é perguntar pelo poder, mas
pelo dever, e abrir-se à voz da verdade e suas exigências. Esta é, a meu ver, a
trama definitiva da luta de Sócrates. Também é o argumento mais profundo do
testemunho dos mártires: os mártires manifestam a capacidade de verdade do
homem como limite de qualquer poder e como garantia da sua semelhança com Deus.
É assim que os mártires se constituem nas grandes testemunhas da consciência,
da capacidade outorgada ao homem para perceber o dever acima do poder e começar
o progresso verdadeiro e a ascensão efetiva (5).
A CONSCIÊNCIA “INFALÍVEL”
A consciência é apresentada como o baluarte da liberdade em
face das constrições da existência causadas pela autoridade. <...> Desse
modo, a moral da consciência e a moral da autoridade parecem enfrentar-se como
duas morais contrapostas em luta recíproca. A liberdade do cristão ficaria a
salvo graças ao postulado original da tradição moral: a consciência é a norma
suprema que o homem deve seguir sempre, mesmo quando vai contra a autoridade.
Quando a autoridade, nesse caso o Magistério da Igreja, falasse sobre problemas
de moral, estaria submetendo um material à consciência, que reservaria sempre
para si mesma a última palavra <...>. Essa concepção da consciência como
última instância é recolhida por alguns autores na fórmula “a consciência é
infalível”. <...>
Por um lado, é inquestionável que devemos sempre seguir o
veredito evidente da consciência, ou pelo menos não o infringir com as nossas
ações. Mas é muito diferente sustentar a convicção de que o ditame da
consciência, ou o que consideramos como tal, sempre estaria certo, sempre seria
infalível. Semelhante afirmação significaria o mesmo que dizer que não há
verdade alguma, ao menos em matéria de moral e religião, isto é, justamente no
âmbito que é o fundamento constitutivo da nossa existência. Como os juízos da
consciência se contradizem uns aos outros, só haveria uma “verdade do sujeito”
<...>.
A pergunta pela consciência nos transporta, na prática, para
o domínio essencial do problema moral e a interrogação acerca da existência do
homem. Não gostaria de pôr esses problemas em forma de considerações
estritamente conceituais e, por conseguinte, completamente abstratas, mas
preferiria avançar de modo narrativo.
Primeiramente, contarei a história da minha relação pessoal
com esse problema. Ele pôs-se pela primeira vez com toda a sua urgência no
começo da minha atividade acadêmica. Um meu colega mais velho <...>,
expressou durante uma disputa a opinião de que devíamos dar graças a Deus por
conceder a muitos homens a possibilidade de fazer-se não-crentes seguindo a sua
consciência; se lhes abríssemos os olhos e eles se fizessem crentes, não seriam
capazes de suportar neste nosso mundo o peso da fé e das suas obrigações
morais. Mas, como todos seguiram de boa-fé um caminho diferente, poderiam
alcançar a salvação.
O que mais me chocava nessa afirmação não era a idéia de uma
consciência equivocada concedida pelo próprio Deus para poder salvar os homens
mediante esse estratagema, isto é, a idéia de uma ofuscação enviada por Deus
para a salvação de alguns. O que me perturbava era a idéia de que a fé fosse
uma carga insuportável que só naturezas fortes poderiam suportar, quase um
castigo ou, em todo o caso, uma exigência difícil de cumprir. A fé não
facilitaria a salvação, antes a dificultaria. Livre seria aquele que não
carregasse com a necessidade de crer e de dobrar-se ao jugo da moral que
decorre da fé da Igreja Católica. A consciência errônea, que permitiria uma
vida mais leve e mostraria um caminho mais humano, seria a verdadeira graça, o
caminho normal da salvação. A falsidade e o afastamento da verdade seriam
melhores para o homem do que a verdade. O homem não seria libertado pela
verdade, mas deveria ser libertado dela. A morada do homem seria mais a
obscuridade do que a luz, e a fé não seria um dom benéfico do bom Deus, mas uma
fatalidade.
Porém, se as coisas fossem assim, como poderia surgir a
alegria da fé? Como poderia surgir a coragem de transmiti-la aos demais? Não
seria melhor deixá-los em paz e mantê-los distantes dela? Foram idéias como
essa que paralisaram, com cada vez mais força, a tarefa evangelizadora. Quem
encara a fé como uma carga pesada ou como uma exigência moral excessiva não
pode convidar outras pessoas a abraçá-la. Prefere deixá-los na suposta
liberdade da sua boa consciência.
<...> O que inicialmente me estarreceu no argumento
mencionado era, sobretudo, a caricatura de fé que me pareceu haver nele. Mas,
numa segunda consideração, pareceu-me igualmente falso o conceito de
consciência que pressupunha. A consciência errônea protege o homem das
exigências da verdade e o salva: assim soava o argumento. A consciência não
aparecia nele como uma janela que abre para o homem o panorama da verdade comum
que sustenta a cada um e a todos, tornando possível que sejamos uma comunidade
de vontade e de responsabilidade apoiada na comunidade do conhecimento. Nesse
argumento, a consciência também não é a abertura do homem ao fundamento que o
sustenta nem a força que lhe permite perceber o supremo e essencial. Trata-se
antes de uma espécie de invólucro protetor da subjetividade <...> que não
dá acesso à estrada salvadora da verdade, que ou não existe ou é exigente
demais; e converte-se assim em justificação da subjetividade, que não se quer
ver questionada, e do conformismo social, que deve possibilitar a convivência
como valor médio entre as diversas subjetividades. Desaparecem assim o dever de
buscar a verdade e as dúvidas quanto às atitudes e costumes dominantes:
bastariam o conhecimento adquirido individualmente e a adaptação aos outros. O
homem é reduzido às convicções mais superficiais, e quanto menor a sua
profundidade, melhor para ele. <...>.
Pouco depois, numa disputa entre um grupo de colegas sobre a
força justificadora da consciência errônea, alguém objetou contra essa tese
que, se fosse universalmente válida, estariam justificados – e deveríamos
procurá-los no céu – os membros das SS que cometeram os seus crimes com um
conhecimento fanatizado e plena segurança de consciência. <...> Não
haveria a menor dúvida de que Hitler e os seus cúmplices, que estavam
profundamente convencidos do que faziam, não podiam ter agido de outra forma.
Apesar do horror objetivo das suas ações, teriam agido moralmente do ponto de
vista subjetivo. Como seguiam a sua consciência, embora esta os tivesse guiado
erroneamente, deveríamos reconhecer que as suas ações eram morais para eles;
não poderíamos duvidar, em suma, da salvação eterna das suas almas.
A partir dessa conversa, sei com segurança absoluta que há
algum erro na teoria sobre a força justificadora da consciência subjetiva; em
outras palavras, que um conceito de consciência que conduz a semelhantes resultados
é falso. A firme convicção subjetiva e a segurança e falta de escrúpulos que
dela derivam não tiram a culpa do homem. Quase trinta anos depois, lendo o
psicólogo Albert Görres, descobri resumida em poucas palavras a idéia que então
tentava penosamente reduzir a conceitos e cujo desenvolvimento forma o núcleo
das nossas reflexões. Görres indica que o sentimento de culpabilidade, a
capacidade de sentir culpa, pertence de forma essencial ao patrimônio anímico
do homem. O sentimento de culpa, que rompe a falsa tranqüilidade da consciência
<...>, é um sinal tão necessário para o homem como a dor corporal, que
permite conhecer a alteração das funções vitais normais. Quem não é capaz de
sentir culpa está espiritualmente doente, é um “cadáver vivente, uma máscara do
caráter”, como diz Görres (6). “Os animais e os monstros, entre outros, não têm
sentimento de culpa. Talvez Hitler, Himmler ou Stalin também não o tenham tido.
Com certeza, os chefões da máfia também carecem dele. Mas, na verdade, é bem
possível que os seus cadáveres estejam ocultos no sótão, junto com os
sentimentos de culpa rejeitados... Todos os homens necessitam de um sentimento
de culpa” (7).
Além do mais, uma rápida olhada na Sagrada Escritura poderia
ter evitado esses diagnósticos e as teorias da justificação pela consciência
errônea. No Salmo 19, 13 encontramos uma proposição eternamente digna de
reflexão: “Quem será capaz de reconhecer os seus deslizes? / Limpa-me <,
Senhor,> dos que me são ocultos”. Isso não é um “objetivismo veterotestamentário”,
mas profunda sabedoria humana: negar-se a ver a culpa ou fazer emudecer a
consciência em tantos assuntos é uma doença da alma mais perigosa que a culpa
reconhecida como culpa. Aquele que é incapaz de perceber que matar é pecado cai
mais baixo do que aquele que reconhece a ignomínia da sua ação, pois está muito
mais distante da verdade e da conversão. Não é em vão que, diante de Jesus, o
orgulhoso aparece como alguém verdadeiramente perdido. O fato de o publicano,
com todos os seus pecados indiscutíveis, parecer mais justo diante de Deus que
o fariseu, com todas as suas obras verdadeiramente boas (Lc 18, 9-14), não
significa que os pecados do publicano não sejam pecados nem que não sejam boas
as obras boas. <...> O fundamento desse juízo paradoxal de Deus revela-se
precisamente a partir do nosso problema: o fariseu não sabe que também tem
pecados. Está inteiramente quite com a sua consciência. Mas o silêncio da
consciência torna-o impermeável a Deus e aos homens, ao passo que o grito da
consciência que aflora no publicano torna-o capaz da verdade e amor. Jesus pode
atuar nos pecadores porque eles não se fazem inacessíveis às mudanças que Deus
espera deles – de nós – escondendo-se atrás do biombo da sua consciência
errônea. Mas não pode atuar nos “justos”, que não sentem necessidade nem de
perdão nem de conversão; a sua consciência, que os exculpa, não acolhe nem o
perdão nem a conversão.
Voltamos a encontrar a mesma idéia, ainda que exposta de
outro modo, em Paulo, que nos diz que os gentios, quando guiados pela razão
natural, sem Lei, cumprem os preceitos da Lei (Rom 2, 1-16). Toda a teoria da
salvação pela ignorância fracassa diante desses versículos: no homem, existe a
presença inegável da verdade, da verdade do Criador, que se oferece também por
escrito na revelação da História Sagrada. O homem pode ver a verdade de Deus no
fundo do seu ser criatural. É culpado se não a vê. Só se deixa de vê-la quando
não se quer vê-la, ou seja, porque não se quer vê-la. Essa vontade negativa que
impede o conhecimento é culpa. Que o farol não brilhe é conseqüência de um
afastamento voluntário do olhar daquilo que não queremos ver.
A estas alturas das nossas reflexões, é possível tirar as
primeiras conseqüências para responder à pergunta sobre o que é a consciência.
Agora já podemos dizer: não é possível identificar a consciência humana com a
autoconsciência do eu, com a certeza subjetiva de si e do seu comportamento
moral. Essa consciência pode ser às vezes um mero reflexo do meio social e das
opiniões nele difundidas. Outras vezes, pode estar relacionada com uma pobreza
autocrítica, com não ouvir suficientemente a profundidade da alma. O que se deu
no Leste Europeu após a derrocada dos sistemas marxistas confirma este
diagnóstico. Os espíritos mais claros e despertos dos povos libertados falam de
um imenso abandono moral, produzido por muitos anos de degradação espiritual, e
de um embotamento do sentido moral, cuja perda e os perigos que acarreta
pesariam ainda mais que os danos econômicos que produziu. O novo patriarca de
Moscou pôs energicamente em evidência esse aspecto, no começo da sua atividade,
no verão de 1990: as faculdades perceptivas dos homens que vivem num sistema de
engano turvam-se inevitavelmente. A sociedade perde a capacidade de
misericórdia e os sentimentos humanos desaparecem. <...> “Temos de
conduzir de novo a humanidade aos valores morais eternos”, isto é, desenvolver
de novo o ouvido quase extinto para escutar o conselho de Deus no coração do
homem. O erro, a consciência errônea, só são cômodos num primeiro momento.
Depois, o emudecimento da consciência converte-se em desumanização do mundo e
em perigo mortal, se não reagimos contra eles.
Em outras palavras: a identificação da consciência com o
conhecimento superficial e a redução do homem à subjetividade não libertam, mas
escravizam. Fazem-nos completamente dependentes das opiniões dominantes e
reduzem dia após dia o nível dessas mesmas opiniões dominantes. Aquele que
iguala a consciência à convicção superficial identifica-a com uma segurança aparentemente
racional, tecida de fatuidade, conformismo e negligência. A consciência
degrada-se à condição de mecanismo exculpatório, em vez de representar a
transparência do sujeito para refletir o divino, e, como conseqüência,
degrada-se também a dignidade e a grandeza do homem. A redução da consciência à
segurança subjetiva significa a supressão da verdade. Quando o salmista,
antecipando a visão de Isaías sobre o pecado e a justiça, pede para libertar-se
dos pecados que se nos ocultam, chama a atenção para o seguinte fato: deve-se,
sem dúvida, seguir a consciência errônea, mas a supressão da verdade que a
precede, e que agora se vinga, é a verdadeira culpa, que adormece o homem numa
falsa segurança e por fim o deixa só num deserto inóspito (8).
FORMAR A CONSCIÊNCIA
Certamente a fé cristã vai além daquilo que a pura razão é
capaz de reconhecer, mas faz parte das suas convicções fundamentais que Cristo
é o Logos, quer dizer, a razão criadora de Deus da qual procede o mundo e que
se reflete na nossa racionalidade. O apóstolo Paulo, que falou com tanta ênfase
da novidade e da unicidade do cristianismo, destacou ao mesmo tempo que o
preceito moral registrado na Sagrada Escritura coincide com aquele que “está
inscrito nos nossos corações, segundo o testemunho da nossa consciência” (Rom
2, 15). É verdade que, com freqüência, esta voz do nosso coração, a
consciência, é sufocada pelos ruídos secundários da nossa vida. A consciência
pode, por assim dizer, tornar-se cega. Precisamos assistir às “aulas de
recuperação” da fé, que volta a despertá-la, e assim torna novamente
perceptível a voz do Criador em nós, suas criaturas (9).
O RESPEITO HUMANO, TRAIÇÃO DA
PRÓPRIA CONSCIÊNCIA
O Juiz do mundo, que um dia voltará para nos julgar a todos
nós, está ali, aniquilado, insultado e inerme diante do juiz terreno. Pilatos
não é um monstro de maldade. Sabe que esse condenado é inocente, e procura um
modo de libertá-lo. Mas o seu coração está dividido. E, por fim, faz prevalecer
a sua posição, a si mesmo, acima do direito. Também os homens que gritam e
pedem a morte de Jesus não são monstros de maldade. Muitos deles, no dia de
Pentecostes, sentir-se-ão emocionados até ao fundo do coração (At 2, 37) quando
Pedro lhes disser: a Jesus do Nazaré, homem acreditado por Deus junto de vós,
<...>, vós o matastes, cravando-o na cruz pela mão de gente perversa (At
2, 22-23). Naquele momento, porém, sofrem a influência da multidão. Gritam
porque os outros gritam e tal como os outros gritam. E assim a justiça é
espezinhada pela covardia, pela pusilanimidade, pelo medo do diktat da
mentalidade predominante. A voz sutil da consciência fica sufocada pelos gritos
da multidão. A indecisão, o respeito humano dão força ao mal (10).
FALSAS PROMESSAS
Cristo diz: Guardai-vos dos falsos profetas que vêm a vós sob
disfarce de ovelhas, mas por dentro são lobos vorazes. Pelos seus frutos os
conhecereis. Parece uma advertência contra as seitas e heresias.
É uma interpretação possível. Mas também é uma advertência
contra qualquer regra fácil. Jesus nos previne contra os “curandeiros do
espírito”. Diz que a nossa norma deve ser perguntarmo-nos: “Como vive essa
pessoa? Quem é na realidade? Que frutos produzem ele e o seu círculo? Analise
isso e verá a que conduz”.
Essa norma prática, ditada por Cristo à vista do momento em
que viveu, projeta-se sobre a História. Pensemos nos pregadores da salvação do
século passado, quer se trate de Hitler ou dos pregadores marxistas; todos
vieram e disseram: “Trazemos a justiça para vós”. No princípio, pareciam mansas
ovelhas, mas acabaram sendo grandes destruidores. Mas também diz respeito aos
numerosos pequenos pregadores que nos dizem: “Eu tenho a chave, age assim e em
pouco tempo conseguirás a felicidade, a riqueza, o êxito”.
William Shakespeare, evidentemente um católico, viveu com
intensidade a roda da existência. Como bom pedagogo, no fim ofereceu uma
recomendação, algo assim como a essência do seu conhecimento mundano: “Compra
tempo divino, vende horas do triste tempo terrenal”. São palavras sábias, como
as que se esperam de um grande homem. O tempo mais bem aproveitado é o que se
transforma em algo duradouro: é o tempo que recebemos de Deus e a Ele
devolvemos. O tempo que é pura transição desmorona e se transforma em mera
caducidade (11).
A REGRA DE OURO
O Sermão da Montanha não corresponde necessariamente às
idéias tradicionais. Opõe-se até às nossas definições de sorte, grandeza,
poder, êxito ou justiça. E, no seu final, oferece ao seu público um resumo,
quase que uma lei das leis, a “regra de ouro” da vida. Diz assim: “Portanto,
tudo o que quiserdes que os homens vos façam, fazei-o também vós a eles; porque
esta é a Lei e os Profetas”.
A regra de ouro já existia antes de Cristo, embora formulada
de maneira negativa: “Não faças a ninguém o que não queres que te façam”. Jesus
a supera com uma formulação positiva que, como é lógico, é muito mais exigente.
Na minha opinião, o que é grandioso é que já não se volta a
comparar quem fez o que, quando, como, a quem; que a pessoa já não se perde em
diferenciações, mas compreende a missão essencial que nos foi confiada: abrir
bem os olhos, abrir o coração e encontrar as possibilidades criativas do bem.
Já não se trata de perguntar que é o que eu quero, mas de trasladar para os
outros o meu desejo. E esta entrega autêntica, com toda a sua fantasia
criativa, com todas as possibilidades que abre diante de nós, está recolhida
numa regra muito prática, para que não fique reduzida a um sonho idealista
qualquer (12).
VIVER AS VIRTUDES
Creio que todo o mundo gostaria de saber como levar uma vida
correta, <...>, como levá-la ao cume sentindo-se à vontade consigo mesmo.
Antes de morrer, o grande ator Cary Grant deixou à sua filha Jennifer uma carta
de despedida comovente. Quis dar-lhe nela algumas recomendações adicionais para
o caminho. “Queridíssima Jennifer”, escreveu, “viva a sua vida plenamente, sem
egoísmo. Seja comedida, respeite o esforço dos outros. Esforce-se para
conseguir o melhor e o bom gosto. Mantenha puro o juízo e limpa a conduta”. E
prosseguia: “Dê graças a Deus pelos rostos das pessoas boas e pelo doce amor
que há por trás dos seus olhos... Pelas flores que ondulam ao vento... Um breve
sono e despertarei para a eternidade. Se não despertar como nós o entendemos,
então continuarei a viver em você, filha queridíssima”.
De certa forma, soa a católico. Seja como for, é uma carta
belíssima. Se era católico ou não, não sei, mas certamente é a expressão de uma
pessoa que se tornou sábia e compreendeu o significado do bem, e tenta
transmiti-lo, além disso, com uma assombrosa amabilidade (13).
NOTAS:
(1) Fe, verdad y cultura.
Reflexiones a propósito de la encíclica Fides et ratio, Primeiro Congresso
Internacional da Faculdade San Dámaso de Teologia, Madrid, 16.02.00.
(2) Letter to Norfolk, pág. 261.
(3) Do conhecido poema Lead, kindly light.
(4) Correspondence of J. H. Newman with J.
KebleOthers, págs. 351 e 364.
(5) Verdad, valores, poder,
págs. 56-64.
(6) A. Görres, “Schuld und Schuldgefühle”, em
Internationale katolische Zeitschrift “Communio”, 13 (1948), pág. 434.
(7) Ibid., pág. 142.
(8) “Se quiseres a paz,
respeita a consciência de cada um (Consciência e verdade)”, em Wahrheit, Werte,
Macht. Prüfsteine der pluralistischen Gesellschaft, Herder, Friburgo, 1993;
trad. esp. Verdad, valores, poder. Piedras de toque de la sociedad pluralista,
Rialp, Madrid, 2000, págs. 40-55.
(9) Entrevista a Jaime
Antúnez Aldunate.
(10) Via-sacra no Coliseu,
Primeira estação: meditação, Departamento para as Celebrações Litúrgicas do
Sumo Pontífice, Roma, 14.04.05.
(11) La fe, de tejas abajo.
(12) La fe, de tejas abajo.
(13) La fe, de tejas abajo.
Edição
para o Blog da Província: Frei Ricardo, OAR
Fonte:
Joseph Ratzinger - uma biografia. (Tradução: Emérico da Gama).
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